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sete virtudes, sete vícios

Sete Virtudes, Sete Vícios

Leonor Nazaré
O que se vê da alma


Um dia descobriu-se que ele, em vez de, como é hábito, vestir a roupa sobre a pele, a conseguiu enfiar por baixo dela, ostentando, assim, uma nudez perpetuamente deformada. A ninguém desde aí voltou apassar despercebido que, apesar de nu, ele se encontrava agasalhado e que por baixo da pele dele a roupa competia com o volume dos seus músculos. (…)

Luís Miguel Nava, “Vestuário”, in Poemas 1

O casaco desabitado de uma outra exposição 2 trazia já consigo essa forma que têm os tecidos destas personagens de lhes cartografar a alma: a roupa incorpora aquilo que a pele e os músculos nela entranharam de mais caracterial, como se o tecido têxtil substituísse o tecido orgânico. Na exposição a que me refiro a roupa aparecia largada no chão e não cobria o tronco de ninguém: o sol justificava os corpos quase despidos deixando vestuário e adereços entregues à expressão irrequieta que a circunstância ociosa de beira-rio tinha apagado neles. Na interrupção das suas funções, o casaco, os chapéus, as botas, os panos conservavam uma contiguidade pulsional em relação às personagens; a par de um lazer preguiçoso, pareciam agitar a memória dos movimentos que o antecediam.

As figuras destas alegorias vestem-se desses tecidos vivos. A roupa poderia ser encontrada, como no poema de Luís Miguel Nava, por baixo da pele, porque se amarrota à superfície com as pregas da alma. A Loucura enverga o roupão de um enfermo ou o casaco maltratado de um vagabundo; a Força a e a Justiça alisam o recorte sumário dos vestidos. A Ira não poderia senão usar um casaco em tumulto. Por aí se começa a desconstruir, de forma muito subterrânea, o que pareciam ser soluções realistas.

Um desenho correcto e virtuoso faz surgir no trabalho de Domingos Rego um conjunto de representações que têm a mais-valia duma figuração inequívoca. Deslocada, logo a seguir, para um território de leituras cifradas, essa figuração tende no entanto a alimentar um vago contínuo narrativo fantástico (com enormes elipses, como no sono profundo), assumidamente alegórico nestas séries. As situações das suas pinturas têm decifração possível em experiências privadas da moral, da sensualidade, do espaço e de referentes existenciais e artísticos. Mas sem evidência, a não ser para a História da Arte, sem comodidade e sem código fornecido.

Há na sua obra uma história da passagem do gesto desenhado ao gesto representado; do movimento do sujeito anterior à tela à figura do Outro posterior à tela. As figuras humanas definem gestos que passaram a ser os da História dos outros, fotografáveis, isolados do gesto “livre”, mais abstracto, do pintor que encontrou na disciplina e contenção figurativas o respeito pelo outro, a possibilidade de o autonomizar e de lhe dar expressão.

A figuração trouxe por isso o mundo dos outros ao seu. Com serenidade. Com figuras sentadas, deitadas, em repouso, contemplativas. Frequentemente de olhos fechados, semicerrados ou ocultados. Aí se pode evocar uma outra história do seu trabalho: a da relação com o trabalho de modelo, com o modelo, com a pose, com o desenho roubado na praia a alguém parado ao longe, com a gestão do anonimato ou da explicitação da figura ou, em alternativa, a apropriação de personagens em segunda mão, em revistas e fotografias, em trabalhos de outros artistas. A figuração do Outro tornou-se uma inclusão dele num círculo de “familiares e amigos”, como se cada personagem não pudesse deixar de ser acarinhado e bem-vindo, mas no resguardo duma encenação e duma ocultação. As conversas são quase silenciosas e os corpos indolentes, os gestos medidos e os objectos displicentemente simbólicos; aparentemente fortuitos mas indispensáveis.


Récits édifiants ou tranches de vie? Masques de morale ou miroirs du monde?

In
Todorov, “réalisme et allégories”, Eloge du quotidien
3

É no espaço da ficção que a identidade das figuras se expõe e se mascara. Poderia dizer-se, no espaço de um livro. Na exposição Banhos de Luz – a Seurat é de um livro que se vê o mundo, é o mergulho na página que abre o espaço. O livro reaparece depois pousado no chão e nas mãos de um dos veraneantes. Na série apresentada no IV Forum Atlântico de Arte Contemporânea 4, um livro com uma estampa de arte é aberto e segurado nas mãos. No trabalho “Nuno#2”, (Fevereiro 2000), o livro pousa aberto ao lado de um rapaz adormecido.

Na Prudência desta exposição, o livro surge como um caderno aberto e em branco, por escrever ou por desenhar. Que pode trazer à leitura da Prudência a invenção escrita, ampliada na imensa biblioteca que aparece ao fundo, senão o refúgio no espaço da ficção e a circunscrição a um enquadramento? Porque o livro é também um bordo, uma moldura, uma forma de reduzir o mundo a um tamanho que se segura na mão. Com o espelho na outra, a Prudência traz ao livro aberto a possibilidade do auto-retrato, a auto-remissão, a duplicidade e a abrangência da cabeça dupla, andrógina 5 com que Giotto a representa. O mundo fica na mão, leve como um desenho e simples como um reconhecimento.


Os objectos na pintura de Domingos Rego são agentes metonímicos, vazios recolectores do essencial de cada personagem, anexos aparentes mas reais identificadores do movimento interno que a quietude dos corpos desencadeia. Conforme a um certo tipo de melancolia, estado propício à suspensão poética e ao delírio inactivo, essa fixação num momento do corpo e essa destrinça dos objectos tornou-se a via natural para a alegoria. Sete Virtudes e Sete Vícios recupera-a majestosamente. Codificando de novo o mundo, com a abrangência e a restrição possíveis, suportáveis. Uma codificação ética, desta vez, porque a moral é para Domingos Rego uma questão de pele, tecida, entranhada.


A ética começa por aparecer cifrada na dualidade. Apropriando o princípio que organiza os painéis de Giotto na Capela Scrovegnia em Pádua, e por extensão os vários tratados teológicos e artísticos sobre vícios e virtudes que a partir da Idade Média proliferaram, Domingos Rego faz a recriação pictórica das virtudes teologais e cardeais e daquilo que se lhes opunha, ligeiramente diferente em Giotto da lista de vícios capitais da actual versão cristã: não há nos painéis de Giotto correspondências exactas com a Soberba, a Avareza, a Luxúria, a Gula ou a Preguiça e no conjunto de virtudes não aparecem por exemplo a Generosidade, a Humildade, a Castidade, ou a Paciência. Mas atravessar a lista das qualidades abstraídas à prática moral e emotiva, por exemplo em obras tão diversas como As Confissões, de Santo Agostinho, a Iconologia de Cesare Rippa, o Tratado das Paixões da Alma de Descartes, As Paixões da Alma de Le Brun ou a Ética de Espinoza equivale a uma aventura da proliferação, da obsessão taxonómica e do esquartejamento da alma que pode, por um lado, enquadrar a opção destas catorze figuras e, por outro, indiciar a sua relativa arbitrariedade.

Foucault refere o facto de a loucura substituir o orgulho, a partir do Renascimento, no topo duma genealogia dos vícios 6. O imenso estudo que faz sobre as configurações e enquadramentos sociais da loucura ao longo dos últimos cinco séculos é suficientemente arqueológico e tecido de complexidade analítica para que tanto o louco desesperado desta galeria de vícios como o louco burlesco de Giotto ( o “paruo” de Gil Vicente, o “sot” medieval) nos pareçam simplificações bem sumárias e desproblematizadas.

A loucura é talvez a questão em que o impulso para a síntese alegórica mais nos pode violentar. Por ser tão profunda, abundante e controversamente semantizável. Por não ser moralizável. Por não habitar um binómio. A prudência, que aqui se lhe opõe, é um detalhe perdido nas múltiplas possibilidades de lhe definir as contrariedades significantes. O espelho que segura na mão aparece, aliás, em muitas das Vanitas como símbolo do desvario ou da loucura e do incitamento à correcção pelo “Conhece-te a ti mesmo”. Mas a percepção da loucura como interior à própria Razão, como quantificação duma latência inscrita sobre uma fronteira ténue e polimorfa, tal como a psicanálise e a antropologia a debaterão mais tarde, é a mais desconcertante das condições para a figuração duma síntese.

O Elogio da Loucura, de Erasmo (1509) é particularmente festivo e feliz no desejo e na consciência dela e dos seus benefícios; na afirmação da verdade a que dá acesso. Mas o discurso da “Loucura” nessa obra é tudo menos o discurso de um louco. Há quatro séculos atrás, na Europa, vivia-se o grande deslumbramento com a Razão; mesmo na expressão dissecante dos seus opostos. A Razão deveria afastar o perigo da loucura; o cartesianismo e a organização social arrumá-la-ão num universo moral, e ao identificá-la com o mal e com a culpa 7 tê-la-ão subtraído ao verdadeiro entendimento da sua natureza para a fazer habitar um binómio redutor.


“(…) Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?”

Camões
8

A dualidade é tão estruturante do real em nós quanto potencialmente encarcerante. O cauteloso (prudente) é um sábio precavido ou um medroso impotente? O inconstante é um ser volátil mas adaptável ou um ser vulnerável e infiel? A caridade é uma perversão social e egoica ou uma forma de amor? A esperança é o adiamento do presente e da dificuldade ou um alicerce do futuro? O invejoso é sempre desprovido de razões? Seria necessário falar de justiça se não houvesse injustiça? Porque é tão improvável encontrar o pensamento de estados anteriores ou posteriores à oposição e à luta? O combate e as lutas pela justiça alimentam animicamente os injustos. São parte do seu prazer. A permutabilidade da esperança e do desespero pode ser alternância em que nenhum dos termos equilibra nunca o outro e em cujo balanceio o sujeito se desestrutura.

A palavra francesa para inveja, “envie”, significa também vontade ou desejo, num território que a neutraliza e disponibiliza para qualquer preenchimento judicativo. Seria necessário proceder a uma operação semelhante para as restantes nesta lista de virtudes e vícios. Seria necessário que, como explica Didi Huberman 9, a fé/a crença, equivalente a “isto é o que eu penso que isto é” não alternasse com a tautologia, “isto é isto” na abordagem do insondável ou do transcendente; que o excesso de sentido da crença ou a ausência cínica dele na tautologia conhecessem uma fractura pela qual o sujeito passasse a ver-se (ao espelho) naquilo que o olha.Seria preciso que o rolo de papiro que a figura da recebe como Lei não pudesse senão ter sido escrito por ela própria, que a mais grave infidelidade fosse a cometida contra si próprio pela alienação do conhecimento.

Uma alegoria é uma cristalização que nestas condições se dissolveria noutro tipo de polivalência. A imagem desmultiplicaria estratos de leitura fazendo jus à herança egípcia de transmissão de ideias pela imagem reclamada ainda por Cesare Ripa na introdução à sua Iconologia 10 e, apesar de, no caso das alegorias que inventaria, já muito pouco se assemelhar a essa prática da Antiguidade.

Ao sublinhar a importância da aposição do nome escrito na imagem, Le Brun 11 sabia que ela operava um fechamento, uma circunscrição. Sem o nome, qualquer destas catorze imagens de Domingos Rego poderia representar o seu exacto oposto ou qualquer outra coisa. E essa é uma das suas mais interessantes qualidades: a Loucura poderia ser vista como num esforço de contenção, a Prudência no momento exacto de início de um desvario, a Inconstância na recuperação iminente (e não na perca) do equilíbrio, a Força corresponder a uma fuga pela procura de um esconderijo, a Temperança a uma fraqueza, um desvanecimento, a Ira como a preparação de um relaxamento. Poderia ver-se no olhar da Justiça o momento que antecede uma decisão perversa; ver o laço ( a ligação) da Infidelidade a prevalecer sobre tudo o resto; encontrar na lateralidade da posição da uma desconfiança; na Inveja a preservação duma posse ou propriedade; na Caridade um furto, na imagem do Desespero a recuperação de ânimo e na da Esperança uma súplica. E a partir destes exactos contrários ou outros desvios que se contêm uns nos outros encontrar um território imenso de possibilidades.

A verdadeira vitalidade duma representação está nessa capacidade de incluir em si mesma o seu contrário e os seus desvios e de integrar sem falsa alternância o que disso encontra no exterior. Está nessa espécie de androgenia (da Prudência de Giotto) em que tudo se encontra prenhe de si próprio e em que as oposições são forçosamente complementares.

Esta “Razão” é diferente da que a cultura ocidental enraíza no Renascimento. É uma Razão sensível, híbrida, uma intuição inteligente, uma consciência itinerante, com a qual a abordagem das emoções dificilmente poderia passar pelo “tratamento dos vícios com o método de um geómetra e com um raciocínio rigoroso (…) como se fosse uma questão de linhas, superfícies e sólidos” 12. É assim que Espinoza anuncia o seu método para abordar as questões da alma, que entretanto deseja identificada com a Razão. O próprio Le Brun, na senda de Descartes e na época da Ética de Espinoza 13, fará um repertório de emoções (paixões da alma) em quarenta e um desenhos de rostos deformados por elas, mas submetidos à geometria no estabelecimento de um discurso visual normativo, intimamente ligado ao exercício do poder absolutista, como explica Félix de Azúa 14.

Apesar de tudo a frieza do geómetra tem inquestionáveis vantagens na abordagem de Espinoza: permite-lhe falar de “paixões” desapaixonadamente, como um cientista: o filósofo classifica, enumera, arruma, relaciona, descreve, explica, afirma princípios. O Homem, naturalmente bom, deveria tender a autonomizar-se das afeições e da inconstância das paixões (emoções), através do conhecimento e do reencontro da sua essência. Não é o sofrimento que modula o ser, mas a invulnerabilidade. O sábio não cessa nunca de ser. Deus, ele próprio, não tem paixões, afeições de alegria ou tristeza, não tem amor nem ódio por ninguém 15.

Estas grandes formulações, expressas na parte final da Ética, ganham corpo a partir de um filão argumentativo que nos é útil abstrair aqui, ao tentar falar de alegorias, da coexistência de opostos, de contínuo polissémico e de abandono de dualidades não complementares e improdutivas. Espinoza começa por chamar “flutuação da Alma” 16 à coexistência de sentimentos contrários, como amor e ódio, em relação a um mesmo objecto. E precisa a certa altura: “O ódio que é inteiramente vencido pelo amor transforma-se em amor, e o amor é por esta razão maior que se o ódio não o tivesse precedido.” 17 Que melhor forma de descrever uma falsa alternância na qual se escamoteia a natureza comum dos dois termos?

Noutra altura, referindo-se à auto-estima, esclarece que o contentamento de si é uma alegria retirada da razão enquanto a humildade é uma tristeza nascida da impotência; que o orgulho e a sub-estima indicam ambos a ignorância de si; que o orgulho é necessariamente invejoso e nasce naquele que se subestima; que o infeliz se consola com a infelicidade dos outros…etc. O mesmo tipo de raciocínio se repete para outras afeições e/ou paixões da alma como para a esperança e o desespero, a modéstia e a ambição, o medo e a audácia... Para Espinoza, se os Homens nascessem livres (mas teria que entender-se livres do corpo e das paixões da alma enquanto o habita), não teriam conceitos de Bem e de Mal. Guiados pela Razão teriam apenas “ideias adequadas.”

É esta neutralização do território emocional que o espírito de geómetra, apesar das restrições da obsessão taxonómica e racionalizante, permite trazer à avaliação dos estados psicológicos que os tratados de Iconologia ou os painéis de artistas animizam. E sem consciência disso, esse espírito de geómetra em Espinoza criava, por entre os seus produtos de dissecação intensiva, condições para a fragilização da própria moral: das suas figuras cristalizadas e arbitrárias, sem razão de ser remissível à grande procura individual.


De regresso à pintura de Domingos Rego convirá ter percebido entretanto a abertura a esse território polimorfo em que os códigos se cruzam sem fazer prevalecer um: de repente as maçãs da Caridade podem vir das histórias em que são envenenadas; o espelho da Prudência ser atravessado com uma qualquer imprudente Alice; o plano liso que recorta a Força indiciar uma arquitectura imaginária escondida; o saco do dinheiro da Inveja conter antes sementes para uma plantação; a vara que a Temperança segura na mão atravessar o chão até ao centro da Terra e o céu até à Estrela Polar; o chapéu da passar a auréola beatificante e todos, mas todos estes personagens saírem de um livro para um palco, numa encenação gigante que um sonho a cores entrecorta e torna improvável na sua aparência de realismo doseadamente fantástico, de peles laranja ou amarelo e fundo atmosférico verde.

A contemporaneidade manifesta das personagens (pelas roupas, pela fisionomia) torna acessíveis e mesmo festivos, o convívio com elas, as leituras desviantes; e coloca-as conosco dentro do tal sono tranquilo, apesar de intrigante. O espaço do sono é um daqueles em que a percepção da tridimensionalidade mais se aproxima da da ilusão pictórica, com a diferença de que esta nos exclui dos seus lugares, olhamos de fora. Mas no sonho, mais que no palco, a tridimensionalidade é também imagem irreal, produtora de inesperado, é feita de sequências interrompidas, tem volume sem ter matéria.


Na origem destes trabalhos de Domingos Rego, construídos em função de alguns enquadramentos espaciais e de um gosto prévio por questões da arquitectura subjacente à sua relação com o mundo e com a Estética, a referência às passagens imaginárias das duas às três dimensões tem raízes, no espírito do grisaille, a técnica com que Mantegna ou Giotto figuraram episódios e alegorias
18. O sentido escultórico, a ilusão de volume que com os sombreados se consegue à exaustão nessa técnica, foram particularmente impulsionadores e motivantes, não de forma directa, mas pelo lado encantatório, pela força da sua teatralidade e presença; pela veneração que um desenho exímio e de valores ambíguos entre o desenho, a pintura, a escultura e a inclusão arquitectónica não podia deixar de causar ao artista.

No trabalho de Domingos Rego, a partir de Banhos de Luz – a Seurat,é a técnica do sombreado com barra de óleo sobre fundos de tela texturados, que define o contorno e o volume das figuras, as atitudes corporais e as dobras dos tecidos. Uma espécie de gnomo do desenho entranhou-se nas telas fazendo delas também pinturas, na relação da forma com os fundos, na gestão da cor suave e progressivamente presente nessa relação, nas contaminações recíprocas e na assumida estranheza das cores luminosas desta série (entre o morno e o estridente, a amabilidade e o vago desconforto da irrealidade), no interior das quais o desenho passou a uma soberania mais submissa, menos agreste, embora ainda soberana.

A escala das figuras na sua pintura cresceu com a intensidade do respectivo impulso para a expressão, erguidas que foram do sono e da “adoração do sol” 19 para a verticalidade do agir, e do nu ou quase para o vestido. Monumental na aproximação do gesto, na focagem do momento físico, a representação pontua-lhes a fluidez imaginária e nesse sentimento de interrupção se suspende a indiscriçaõ do nosso olhar, tornado pequeno e próximo de um modo quase impossível. A invisibilidade e insignificância do ponto a partir do qual olhamos torna-nos íntimos da figura, apanhados na deslocação do ar provocada pelos seus braços, pela roupa, pelo hálito. O grande plano dá-nos a medida duma performatividade; um ligeiro contre-plongé, em alguns dos casos, faz da suspensão do gesto uma iminência sobre nós.

Há um dispositivo de absorção em que a natureza alegórica, tão assumida, afinal se dissipa. Por nos implicar tanto. A alegoria fixa e delimita as figuras; estes trabalhos projectam-nas para fora do espaço da tela, fraccionam-lhe o corpo, investem de desejo a parcialidade, redimensionam o papel e presença do rosto, das mãos, dos pés, do tronco e do pescoço.

A visibilidade do rosto por inteiro é uma concessão rara neste conjunto. Trazido de um percurso na obra de Domingos Rego em que foi frequentemente observador semi-ocultado 20 ou agente duma quietude nostálgica, o rosto aparece seccionado ora em metades ou terços verticais, ora horizontais, quando frontal, de perfil ou completamente ausente, à excepção de dois casos. O rosto mais pleno é o da Justiça como uma atribuição devida e legítima de integridade e transparência. Mas em muitos casos é a torsão ou exposição do pescoço que prevalece sobre o lugar do rosto e a identidade.

O tronco e as mãos centralizam a força anímica que mais define cada personagem. Neles se concentram a tensão emocional, as vias de contaminação dos panos, a crispação, os centros de equilíbrio. As mãos seguram (na Prudência, na Temperança, na e na Fidelidade), escondem-se (na Esperança, postas já no futuro e por isso fora do campo de visão, na Loucura, na Caridade, em que a sua ausência é um paradoxo da ideia de dádiva), e fecham-se de punhos cerrados (na Força, na Ira, na Inveja e no Desespero). Por vezes uma mão contraria a situação da outra na mesma figura.

As mãos têm uma configuração particular no caso da Justiça: sólidas e serenas, pesam uma imaterialidade, equilibram dois lados invisíveis do mundo. Pelo contrário, na Inconstância é a perca do equilíbrio que está em causa. Único trabalho em que se recorta uma parte da metade inferior do corpo, a Inconstância focaliza os pés nus na sua ligação tornada precária à terra e à firmeza do solo 21, os joelhos como centro articulatório duma desagregação, e a mão, trazida para perto deles, como mão de recurso, de emergência, chamada a cumprir uma função que não lhe cabe, na sugestão da queda.

Estas mãos cheias de nada, de símbolos ou apenas da roupa que se colou à alma, são mãos sem posse, que se definem pelo ser, pelo alcance e pela crispação, e não pelo ter. Agem um alívio ou uma retoma. São nós do corpo. Essa sua condição despojada remete a iniciativa interior destes seres para uma espécie de flutuação e impedimento. Apesar da pujança dos corpos, há neles “as coisas diáfanas do coração” 22 e uma falta mais ou menos abstracta (porque, apesar de tudo há enquadramentos) de chão e parede sólidos, um sobrevoo do mundo material.

Espinoza considerava todos os movimentos da alma remissíveis, em última instância, ao Desejo, à Alegria e à Tristeza. Na leitura dos trabalhos de Domingos Rego só fará sentido falar nas três coisas em simultâneo e numa “Flutuação da alma” , para retomar o termo de Espinoza acrescentando-lhe uma espacialidade, num tipo de suspensão em que a tonalidade alegre ou triste, a paz e a agitação rodopiam fulgurantes em contra-correntes do desejo e da luz.

Agamben desenvolve reflexões sobre um tipo particular de tristeza, a acedia, que aparece incluída na lista de oito, e não sete, pecados capitais da tradição patrística: um misto de tédio e preguiça, entre o melancólico e o angustiado, que devastava os castelos e mosteiros da Idade Média. Um dos seus mais temíveis descendentes seria o Desespero, assim nomeado por “faltar o pé” 23, a quem o sentia, para caminhar na boa direcção. A explicar essa espécie de paralisia da alma surge a ideia de que corresponde a uma perversão pela qual se deseja e se barra a via necessária ao próprio desejo, pela qual a vontade quer um objecto mas não a via que conduz a ele 24.

No entanto, uma antiga tradição associava a poesia, a filosofia e a arte a esse estado de espírito, e em geral a doutrina do génio ao humor melancólico. A tendência contemplativa seria dada pela influência elementar da terra unida à influência astral de Saturno. A partir da Melencolia de Dürer, Panofsky fez um estudo 25 que prolonga o trajecto de apreciação da sabedoria melancólica já enunciada em Aristóteles e retomada recentemente por exemplo em Les Enfants de Saturne de Margot e Rudolph Wittkower. 26

“Modelar o máximo de realidade possível captando o máximo de irrealidade possível” 27 – assim se define esse universo em que mesmo os objectos, esvaziados do seu sentido habitual pelo ponto de vista melancólico e transformados em emblemas do luto que faz deles, significam o próprio espaço do inalcançável, reflectem o que só pode ser possuído na condição de ter sido irrecuperavelmente perdido 28. “Um contentamento descontente” no soneto de Camões 29 daria também a medida dessa procura nómada de um paraíso sempre em fuga diante de cada um e, em particular, das almas de artista.

No poema de Al Berto, Giotto foi “o primeiro a enclausurar a alma/ no interior de corpos limitados e sólidos /que nos convidam à reflexão sobre a natureza humana /e sobre as coisas diáfanas do coração” 30. Nas telas e folhas destas virtudes e destes vícios, Domingos Rego é o enésimo a libertar a alma no espaço ilimitado que ela tece do corpo para o exterior, e a convidar à intuição das coisas que lhe ditam a itinerância.

Lisboa, 18 de Agosto de 2000

catálogo
1. Luís Miguel Nava, “Vestuário”, in Poemas, ed. Limiar, Lisboa, 1987

2. Banhos de Luz- a Seurat, Palmira Suso, Julho de 1999

"Força"
"Inconstância"

3. “Narrativas edificantes ou fatias de vida? Máscaras da moral ou espelhos do mundo?”,in
Todorov, “Réalisme et allégories”, Eloge du quotidien, Essai sur la Peinture Hollandaise du 17ème siècle, ed. du Seuil, Paris, 1977, página 48

4. PonteVedra, 1999

5. No cabelo da figura feminina da Prudência, Giotto criou a sugestão dum perfil masculino, recriando o motivo clássico da representação de Janus, o deus que olhava nas duas direcções, para o passado e para o futuro e guardava a entrada de algumas cidades.

Giotto, Capela Scrovegni, Pádua (pormenor)

Ver o políptico

6. Michel Foucault, Histoire de la Folie à l’âge classique, 1972, Gallimard, Paris, 1999, pág. 40
"Prudência"
"Loucura"
7. Ibidem, em diferentes capítulos.

8. Camões, “Amor é fogo que arde sem se ver”

9. Didi Huberman, Ce que nous voyons, ce qui nous regarde, ed de Minuit, Paris, 1995
10. Cesare Ripa, Iconologia, 1593
11. Charles Le Brun, L’apogée de L’expression des Passions, 1667/8
12. Spinoza, Éthique, ed. Garnier Flammarion, 1965, pág. 134

13. Décadas de 60 e 70 do século 17

14. Félix de Azúa, “Las Pasiones al Servicio de la Corona”, in El Paseante, el cuerpo y la fotografia, 1996

15. Spinoza, Ibidem, p. 318

16. Ibidem, por exemplo pág.152

17. Spinoza, Ibidem, p. 177

"Temperança"
"Ira"
18. Exemplos de trabalhos em grisaille: Giotto, Sete Vícios e Sete Virtudes na Capela Scrovegni, em Pádua, cerca de 1305; Mantegna, Sansão e Dalila, 1490; Introdução do Culto de Cibele em Roma, 1505/6.
19. “Os adoradores do sol” é o nome de um de três trabalhos expostos no ARCO (Madrid) em Fev. 2000. Mas na série Banhos de Luz- à Seurat, ou noutros trabalhos como “Nuno#1” e “Nuno#2”, a circunstância ambiental dominante é a do banho de sol e a do ócio desse momento , a que um cão adormecido ( na série dedicada a Seurat) dá renovada expressão.
20. Aspecto particularmente notório na exposição Troquemos de Olhar, Casa do Corpo Santo, Setúbal, 1998
21. Algumas destas figurações recuperam, de forma híbrida, ideias das alegorias de Giotto ou da Iconologia de Ripa, ou ainda, por exemplo, de Mantegna, que figura o seu “Occasio Poenitentia” (1500) com uma equilibrista a cair do globo sobre o qual deveria deslocar-se. Mas introduzem livremente outras propostas.

22. In Al Berto, “A Lição de Giotto”, A Secreta vida das Imagens, Lisboa Contexto, 1991

23. Agamben sugere uma relação etimológica de “Désespoir” com “perdre le pied”. Stanze, parole et fantasme dans la culture occidentale ed. Bourgois, Paris, 1981, pág. 27

2
4. Agamben, Ibidem.

25. Klibansky, Panofsky e Saxl, Saturn and Melancholy.

26. Tradução do alemão de Daniel Arasse, ed. Macula, Paris 1991

27.Tradução nossa; Agamben, ibidem, p. 59

28. Ibidem

29. “Camões, “Amor é fogo que arde sem se ver.”

30.
Obra referida na nota 20


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