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ócio

Ócio

Domingos Rego


1. Contemplação

“Ocioso, à beira-mar, se se tenta decifrar o que nasce em nós na sua presença; quando cada um, o sal nos lábios e o ouvido presenteado ou castigado pelo rumor ou pelo barulho das ondas, quer responder a essa presença todo-poderosa, encontra esboços de pensamentos, fragmentos de poemas, fantasmas de acções, esperanças ou ameaças; e uma completa confusão de caprichos excitados e imagens agitadas por essa grandeza que se oferece, que se defende, que nos apela pela sua superfície ou provoca temor pela sua profundidade e nos invade.” 1

Paul Valéry

Num texto de 1930, intitulado "Regards sur la mer", Paul Valéry ensaia um conjunto de reflexões que partem da observação do mar. Esse “grande corpo líquido” como ele o designa, funciona como pretexto para o homem se encontrar consigo mesmo, um grande espelho a céu aberto, que nos devolve a imagem do que somos e que guarda no seu interior todos os mistérios e inquietações que nos perseguem. O mar é, neste contexto, o território natural do ócio, um elemento regenerador nas nossas vidas, um dispositivo para a contemplação sem limites de espaço ou de tempo. Metáfora líquida da própria pintura. Pintura que se permitiu o tempo e o espanto para que o próprio conceito de paisagem existisse.

As pinturas aqui apresentadas tratam desse território, um território de evasão; noção romântica que implica afastamento, distância em relação à realidade. É nesse sentido que se entende a adopção de planos picados sobre a paisagem, pairando sobre ela, elevando-nos numa posição crítica que nos possibilite um corte com o quotidiano comum. Esse é o ponto de vista que se oferece ao espectador, não lhe estabelecendo limites ou margens; a linha do horizonte é escamoteada e a superfície do mar prolonga-se para lá dos limites do quadro. O mesmo acontece com os elementos vegetais que pontuam as composições e que estabelecem relações entre a terra e o céu na sua verticalidade ou acentuam as panorâmicas na sua disposição horizontal.

Estes elementos vegetais definem um eixo de simetria claro nas composições. Como refere Remo Bodei, num capítulo intitulado "A beleza do mundo": “Para além de reflectir a estrutura dos seres formados por metades especularmente opostas e complementares – que como todos os duplos, também têm um carácter perturbador –, a simetria, na repetição de determinados módulos, suscita indubitavelmente um sereno sentimento de paz”.
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Se tentarmos cartografar este território percebemos a riqueza das superfícies: da água, da areia, das rochas, da vegetação resistente e bela. Na sua diversidade, estas superfícies condensam muito do que é a pintura na sua essência: espaço, luz e cor.

Ao adoptar o quadrado como forma do suporte, é inevitável deduzir um desejo de estabilidade, de equilíbrio, de ligação à terra, de predomínio das horizontais. Esta importância das horizontais reforça o sentido do próprio tema: cenas de ócio e tranquilidade, produzindo um efeito de suspensão do espaço e do tempo inerente às cenas tratada.
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“O azul não tem dimensão. Ele está para além das medidas aplicáveis às outras cores.” Assim se referia Yves Klein a esta cor que usara recorrentemente no seu trabalho, numa associação clara ao céu e ao mar e ao seu desejo de espaço e de vazio. O azul é a presença visível da atmosfera, “ a grande lente do globo terrestre, a sua retina brilhante.”
4 Há um desejo de clareza, de luz e de sol, que detectamos em autores como Piero della Francesca ou Matisse e que são convocados nestes trabalhos. Uma luz meridional que evidência as formas e as dá a ver sem subterfúgios tenebristas.

 

2. Tempo

“O ócio vive da afirmação. Não é simplesmente o mesmo que falta de actividade; não é o mesmo que tranquilidade ou silêncio, nem sequer interior. É como o silêncio nas conversas dos que se amam, que se alimenta das recordações que existem entre eles.”
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Josef Pieper

Pintar é uma forma de dilatar o tempo, de prolongar o olhar sobre uma realidade cada vez mais refém da velocidade. “ É a possibilidade de fazer fotografias instantâneas, ou dito de outro modo, de acelerar a captação de imagem, que vai favorecer uma estética do desaparecimento que, hoje, a televisão e o vídeo prolongam.”6 É assim que Paul Virilio coloca a questão da estética do aparecimento, própria da pintura e da escultura face à estética do desaparecimento associada ao cinema, à fotografia ou ao vídeo. Nas pinturas que aqui nos ocupam constata-se a exploração de um paradoxo que se revela nos seguintes termos: muitas das cenas apresentadas congelam o tempo de uma acção, num instantâneo fotográfico que o acto de pintar prolonga tal como Hockney fez em "A bigger splash". A sedimentação do tempo, para usar uma expressão do próprio Hockney, resulta da própria acção de pintar, do tempo implicado na construção da pintura.

As cenas de mergulho, ou de ski aquático sublinham essa fixação do movimento mas implicam também uma ideia de abandono, de entrega, de ausência de esforço, os corpos são puxados, desafiam a gravidade num mergulho, ou pairam no ar nas cenas de parapente. A espuma branca dada pela ausência de tinta, é o rasto, o vestígio do que aconteceu entre o antes e o depois. Há uma suspensão, um eterno descanso, uma morte da acção para que o quadro se concretize.

É sabido o significado iconográfico das flores e dos elementos vegetais para convocar a ideia de passagem do tempo e de efemeridade da vida. Nestas pinturas, esses elementos surgem no seu apogeu, numa exaltação de cor e de vida, imortais na sua perfeição jovial.

 

3. Liberdade

Diz-se do tempo de ócio que é um tempo livre. Essa liberdade prende-se com o facto de não haver obrigação de produzir acções ou bens úteis. Também a arte se constitui como uma necessidade inútil, pelo menos nas chamadas artes livres, dirigidas ao saber, na expressão de Aristóteles, por oposição às chamadas artes servis que visam a obtenção de um bem útil. Esta liberdade tornou-se um bem escasso e precioso, nas sociedades contemporâneas. A sua posse adquire o valor mítico de um paraíso perdido, de uma ideia de felicidade forjada no tempo de trabalho. Como bem observa Baudrillard no seu livro A Sociedade de Consumo: “O repouso, o descanso, a evasão e a distracção talvez sejam necessidades, mas não definem por si mesmas a exigência própria do lazer, que é o consumo de tempo. O tempo livre consiste talvez em toda a actividade lúdica com que se cumula, mas é, antes de mais, a liberdade de perder o seu tempo e de eventualmente de o matar e dispensar em pura perda.”
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Nos quadros aqui apresentados o Homem integra a natureza, despido de roupas e de estatutos próprios da actividade laboral, representado numa escala que o relativiza em relação aos cenários naturais em que se move. Há também nessa relatividade uma parcela de liberdade que lhe escapa quando pela sua acção no trabalho é protagonista.


Vila Nogueira de Azeitão, 9 de Maio de 2004

catálogo
 
1. Paul Valéry, Piezas sobre arte, Madrid, Visor, 1999, pág.181 (tradução livre do autor a partir da versão espanhola).

2. Remo Bodei, La forma de lo bello. 1995, Ed. Visor, Madrid, 1998, pág.42 (tradução livre do autor a partir da versão espanhola).

3. “Compensando o predomínio de qualquer das dimensões espaciais, o quadrado pode interromper a acção mundana e criar um estado de intemporalidade. É, assim, um formato apropriado para os artistas que querem apresentar um mundo estável.” Rudolf Arnheim, O Poder do Centro, 1988, Ed. 70, Lisboa, 1990, pág. 133.

4. Num capítulo intitulado "Céu aberto" do livro A Velocidade da Libertação, Lisboa, Relógio D’Água, 2000, pág.21, Paul Virilio reflecte sobre as características da cor azul e da sua capacidade de convocar espaço e de nos libertar da gravidade.

5. Josef Pieper, El ocio y la vida intelectual, Madrid, Ediciones Rialp, 2003, pág. 48 (tradução livre do autor a partir da versão espanhola).

6. Paul Virilio, Cibermundo: a Política do Pior, Lisboa, Teorema, 2000, pág.24
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7. Jean Baudrillard, A sociedade de consumo, Lisboa, Ed. 70, 2003, pág.163
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