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Inclinação Natural

Inclinação Natural

Leonor Nazaré
À velocidade de cada luz

 

“… ele sobe, sobe, o olhar sempre dirigido para cima, como se tivesse descoberto  uma saída pelo tecto da sala e como se tentasse alcançá-la.” 1

Rilke, “A lição de ginástica”, 1929, Oeuvres. Prose, p.258, ed. Seuil, 1966

 

Sabemos que é por ter subido muito que Ícaro caiu. Mas quem poderá saber o tamanho do êxtase que terá sentido durante a subida? Quem saberá algum dia a impressão causada pela grandeza do planeta visto de longe e pela surpresa dos pontos de vista dados pelas diferentes inclinações durante a queda?
Perante as pedras espalhadas em terreno despido de alguns destes desenhos, sentimos a vertigem de ver o solo de longe e de não saber o que a aterragem nos prepara. Solo lunar, marciano, terrestre?
Mais do que a perspectiva do pára-quedista, esta pode ser a da sonda interplanetária que perscruta outros habitats. A aridez do lugar confere a cada sombra um valor extremo. A ideia de recorte territorial remete, algures, para uma presença na memória, ou para uma inventariação de presenças futuras cuja beleza nos atrai.
O excesso ofuscante destes fundos brancos acaba por suspender o que neles ocorre, numa espécie de benévola suavidade. Há desenhos em que um fragmento de pincelada parece procurar uma brisa favorável ou uma simples possibilidade de permanência. Algumas manchas passam…Imperceptivelmente, adensam a sua massa, esfumam-se ou caem detentoras duma insustentável leveza. A fuga de cada unidade ou de cada círculo, a sua suspensão, agregação ou dispersão faz supor esse vento ameno mas constante ao qual oferecem poética resistência – ensaiando, sem pressa, novos lugares no espaço.

Num texto sobre Picasso, Eugénio d’Ors estabelece uma distinção entre pintores da fuga e pintores do contraponto, no desenvolvimento duma analogia da música e da pintura. Para ele há pintores “cuja composição tem um estilo de fuga, ou seja, nos quais as formas obedecem a um ritmo, que por sua vez obedece a um centro ordenador situado fora do quadro. Ao contrário destes, os pintores do contraponto são aqueles que gostam de equilibrar as formas segundo uma lei que se encontra no interior da composição e em torno de um centro situado no próprio quadro”2.
Poderia dizer-se destes trabalhos de Domingos Rego que são desenhos da “fuga”, no sentido dessa analogia musical. O seu centro está fora das margens do papel, é uma força invisível que ergue ou lança em queda, que faz sobrevoar ou que aspira os corpos no seu movimento. O ritmo da sua passagem é o da urgência do chão ou o do deslumbramento com o céu, não é o de um lugar ordenado.

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Numa fotografia em que capta a sua própria sombra diante de um carro e na iminência do desastre, o artista fornece indícios que nos serão úteis: o enquadramento, o contraste e a velocidade – três pontos de vista para falar da fotografia (desta e da fotografia em geral) e que correspondem a outros tantos que nos aproximam dos desenhos. A colocação, o peso e a natureza do gesto advém deles.
Não por acaso, Domingos Rego fotografa desde sempre e trabalha frequentemente a partir de fotografias realizadas. Raramente expôs fotografia mas ela é subterrânea a todo o seu trabalho e nos momentos do seu percurso de pintor em que o contorno era preciso, a pintura detalhada e pacientemente consolidada e a relação com a tela uma demora laboriosa, a fotografia era esse modo rápido de captação do instante que se lhe contrapunha. A partir de 2006, o modo rápido de captação passa a ser, cada vez mais, o do desenho e é, neste conjunto de trabalhos, decididamente fulcral.

Fragmentos da estrada e das suas marcas fotografadas estão na origem de uma série de desenhos em que, superfícies negras esquinadas se definem sobre fundos brancos manchados (por pó de carvão peneirado sobre a superfície), eles próprios adquirindo formas protagonistas, numa alternância tensa entre o estatuto respectivo de figura e de fundo.
A natureza oblíqua de muitas das suas linhas sugere deslize e movimento, espaços ambíguos, cuja dureza é uma força e cuja força é um lugar. Uma estrutura instável pode sempre ser uma estrutura que cai. Que leis gerem este caos?
Há desenhos em que filamentos, paus ou varetas se sobrepõem como no jogo do micado e formam um tecido rígido, apesar da relativa transparência do volume de cada um; indiciam uma fixação. Talvez nos preparem para as camadas que o peso tem noutros desenhos de barras mais largas, para a clareza da sua densidade, a identificação da sua mobilidade e hierarquia, a surpresa das direcções, a perspectiva de cada antecipação labiríntica.
Os ângulos abruptos (tábuas, muros, chão, estrados, pilares hipotéticos), a força da sua hiper-extensão, os grandes planos sobre a sua passagem coexistem com a sensação de metamorfose de uma trama em malha elástica ampliada. Trazidos ao âmago das matérias, é-nos dada a velocidade da luz no espaço da escuridão; a materialização do peso no espaço dessa luz; as fases de turbulência intermédia, as margens de contaminação, a fragilidade relativa de cada limiar.

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A introdução da cor em três dos trabalhos – é um sobressalto inesperado no preto e branco generalizado – outra marcação rítmica, outra frequência de vibração.
A planura impecável do verde azulado num dos trabalhos, o pigmento menos denso no verde de um outro, ou a base laranja de uma superfície pautada de um terceiro integram as composições em momentos diferentes de revelação tonal, com intensidade, colocação e definição variáveis.
Destas cores se dirá que são muito vivas, tanto mais significativamente quanto se tiver aceite, diante de todos os outros trabalhos, a auto-regulação expressiva dos pretos, brancos e cinzentos. Esta é tão impositiva e hegemónica e a sua aceitação tão natural, que a cor destes três desenhos nos parece a irrupção duma vitalidade extra, um assomo de energia na flutuação vagamente onírica em que nos colocam as paisagens inclinadas, as pequenas pedras na areia, os pontos luminosos no breu da noite ou a majestosa decrepitude dos girassóis.
Há linhas muito finas sulcadas em parcelas destas superfícies com materiais riscadores menos convencionais que com propriedade convocam o trabalho da gravura, insistindo na ideia de um corpo a corpo com o suporte, de uma luta contida e subtil, de uma incontornável necessidade de inscrição.

A atmosfera oblíqua das paisagens inclinadas é ensombrada e severa. Há uma ameaça de destruição que as turva e instabiliza e que nelas inscreve um enigma: se é a nossa inclinação, já pouco natural, que nos coloca assim diante delas, admitiremos que uma forte tempestade perturbou a nossa verticalidade axial, a nossa sensibilidade magnética, o nosso eixo de gravidade. Despenhamo-nos, ou sonhamos uma perturbante irrealidade. Se o próprio solo se inclinou e com ele o céu e o norte e todas as construções humanas, a catástrofe não é individual, é colectiva, geográfica ou mesmo planetária. A terra terá entrado em rota de colisão com a sua própria centrifugacidade.
A passagem pelas estradas e o reconhecimento dos prédios ou dos postes de electricidade equivalerá assim a uma vertigem terminal, a uma queda entrópica na perda da perspectiva. Estes poderiam ser os primeiros momentos de um filme visto ao contrário, ou os ecrãs de uma bobina repentinamente desacertada do seu carreto.

O próprio sol é já apenas uma memória intensa e prolongada nos girassóis ressequidos de outra série. A sua estatura e magnificência permanecem intactas na folhagem abundante, na solenidade orgulhosa da estrutura erigida, mesmo na morte. Dedicada ao sol e à forma circular, à elevação e ao movimento rotativo, à abertura e à identificação cromática com o astro rei, esta flor exibe, nestes desenhos, e por antítese do seu brilho em Van Gogh, uma espécie de calcinação simbólica (sóis negros?) e a última das suas mais naturais inclinações – aquela de que precisam as sementes para voltar ao solo e reiniciar todo o processo da vida.
Os dois cardos são figuras aéreas e suspensas na luz. Equivalem à recuperação da nobreza da forma naquilo que é normalmente vegetação menosprezada. Tal como a flor do figo da Índia noutro desenho – flor grande feita aparição na terra escura, surpresa generosa, ocupação afirmativa.
A solidez do núcleo dos cardos não deixa de indiciar a sua permeabilidade, a agressividade dos picos torna-se beleza frágil das linhas. Mantêm-se inclinadas.
Da alfarrobeira, por sua vez, são-nos dadas as vagens, os frutos, a suspensão filamentosa, a proliferação, a modéstia formal, e uma vaga sugestão animal.

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Em dois desenhos desta selecção, estamos diante de dois círculos de matéria bruta – pontos gigantes, nem minerais, nem vegetais, nem aproximadamente referenciais sequer, dados como presença simples, redonda, relativamente estabilizada, uma formação da própria matéria no momento em que acorre ao mundo, de consistência indecisa ainda.
Curiosamente, quase todos os desenhos apresentam uma espécie de iridescência difusa que lhes é dada por brilhos de pigmento, com maior ou menor relevo requerido à grafite líquida, à tinta alquídica ou à cera de abelha. Há, por isso, uma cintilação difusa desta matéria que coexiste com o seu peso mineral.
Com o grande tríptico de fundo negro chegámos a uma zona do universo de trânsito intenso de focos luminosos, de cometas que riscam o firmamento e astros que procuram a sua órbita ou desenham constelações.
Não há centro na infinitude do universo e quando olhamos um céu nocturno ele é igualmente semeado de pequenos pontos luminosos por todos os lados, seja qual for a nossa inclinação. Alguns destes desenhos dão-nos esse céu: fluência absoluta de corpos pesados mas incandescentes; geometria e perfeição orgânica, assinalável profundidade de campo, espacial e lumínica; pontos literais de fuga, de absorção galáctica. Mas esse espaço imenso pode ser também interior e a coincidência das duas possibilidades é estonteante.

Nos desenhos de Domingos Rego, o peso é uma sugestão táctil, sempre que se pretende também ilusão visual. A sua entrega à celeridade dos movimentos e inscrições destes trabalhos, ao imprevisto de uma captação ou ao peso e medida da sua matéria é afinal a expressão natural das inclinações da alma perante as forças que a acometem.


Lisboa, Fevereiro de 2010

catálogo
 
1. Versão portuguesa de Leonor Nazaré.
2. Eugénio D’Ors, 2001, p.42, citado por Javier Arnaldo em Analogías Musicales, kandinsky y sus Contemporáneos, Fundación Caja de Madrid, 2003, p.293.
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